30 agosto 2007

A cidade radiosa (VIII)


No último "post" sugeri ser fundamental, para compreender e apreciar um bairro como a Codivel, estar na posse de algum conhecimento sobre o processo de gestação da Carta de Atenas bem como sobre o modo de vida do seu principal mentor, Le Corbusier. A Carta de Atenas é, para os leigos nestas matérias, o principal documento programático do Urbanismo Moderno, que inspirou grande parte da produção urbanística do pós-guerra.
A Carta de Atenas foi desenvolvida em 1933, num período conhecido como "A Grande Depressão", de profunda crise económica e social a nível mundial, despoletado pelo "crash" da bolsa de Nova Iorque de 1929 mas com origens mais profundas. Em particular, as carências habitacionais eram um problema premente num contexto de pobreza generalizada em muitos países ocidentais. Os métodos tayloristas de produção industrial, assentes numa especialização extrema das tarefas executadas por cada trabalhador, estavam em afirmação e a sua aplicação ao desenho da cidade e ao sector da construção (nomeadamente, através da produção em massa de componentes como janelas ou portas) era encarada como uma saída pragmática para os problemas urbanos e da habitação.
Paralelamente, estava-se a assistir à democratização do automóvel mostrando-se a cidade oitocentista dos "caminhos de mulas" mal adaptada ao mesmo. Numa época de motores "gulosos" não catalizados, os centros das grandes cidades estavam-se a tornar locais de ar irrespirável. Para tal também contribuía a permanência de indústrias poluidoras nesses locais, por vezes ainda na era do carvão, numa convivência nada saudável com outras actividades económicas e com a habitação.
Desta forma, era relativamente pacífico defender-se uma nova forma de planear a cidade assente na especialização funcional do espaço (habitação, trabalho, circulação e lazer), na circulação ordenada e separada para carros e peões, na oferta de habitação confortável, económica e que favorecesse a qualidade de vida, com acesso a boas condições de insolação, espaços verdes e equipamentos colectivos.
A forma moderna de pensar a cidade ia, contudo, mais além: ambicionava a felicidade do homem urbano "médio" trazendo-lhe a natureza até ao seu apartamento: o sol, o céu, as árvores, o horizonte. Esta visão utópica deverá ter sido influenciada, certamente, pelas circunstâncias especiais em que a Carta de Atenas foi elaborada: em pleno Mar Mediterrâneo, a bordo do navio Patris, entre Marselha e Atenas.
A Carta de Atenas só foi divulgada 8 anos depois (1941), em plena II Guerra Mundial, certamente antecipando as necessidades construtivas que se avizinhavam. Le Corbusier foi o mentor dessa iniciativa e, segundo se sabe, terá acrescentado ao texto inicial muito de seu (José Lamas, Morfologia Urbana e Desenho da Cidade, FCG, 1992, p. 344).
Le Corbusier era um homem que levava uma vida algo recatada, apesar de ter sido, no seu tempo, uma figura pública mundialmente conhecida. Não pense o leitor que vivia nos Campos Elísios ou na Av. Foch ou que passava férias na cosmopolita Cannes.
Le Corbusier viveu entre 1934 até ao seu desaparecimento em 1965 (com excepção do período em que a Paris esteve ocupada pela Alemanha) num apartamento relativamente pequeno situado numa zona que, na década de 30, era um mero subúrbio de Paris (Porte Molitor, sensivelmente entre Roland Garros e o Parque dos Principes). Vivia perto do céu, numa cobertura em duplex, plena de luz e decorada de forma minimalista. Acordava todos os dias com vista para o campo. Passava as manhãs a pintar no seu estúdio com uma vista magnífica sobre Paris. Almoçava com Ivone Gallis, a sua mulher de sempre. As tardes eram passadas no seu atelier de arquitectura. No segundo piso da sua casa, tinha um terraço jardim, que lhe permitia conviver com o mundo vegetal, com o sol e com as estrelas. De Verão, romava a Roquebrune-Cap-Martin, junto ao Mar Mediterrâneo, onde pernoitava literalmente numa barraca de madeira, não muito diferente dos abrigos de jardim actualmente tão em voga.
Deborah Gans, no seu essencial The Le Corbusier Guide (Princeton Architectural Press, 2006), refere que Le Corbusier ficou agradado com o convite para projectar o Convento de La Tourette porque "personally aspired to certain monastic values, including material simplicity, self-discipline, and silence" (p. 101).
Cidades como a Codivel foram, desta forma, inspiradas pelo pensamento de um homem simples, que abdicava da vida mundana para estar com aquilo que é verdadeiramente importante: o sol, o céu, o horizonte, as árvores, o mar, o amor de uma mulher. Muito pouco, para muita gente deste novo século.

28 agosto 2007

A cidade radiosa (VII)

Foi no Bairro Codivel que os princípios da Carta de Atenas foram aplicados de forma mais pura na Cidade de Odivelas. De facto, foram implantadas bandas e torres de forma livre no terreno tendo em vista maximizar as vistas e a insolação; a circulação faz-se por vias bem hierarquizadas com separação dos tráfegos automóvel e dos peões; foram criadas faixas verdes com equipamentos colectivos (escolas, pavilhão polidesportivo, parque infantil); foi praticado algum zonamento funcional com a criação de um centro comercial - apesar de existirem vários espaços comerciais espalhados pelos vários lotes habitacionais.
Em particular, na Codivel podemos apreciar aquele que é, muito provavelmente, o conjunto de bandas dispostas de forma radial ao longo do eixo heliotérmico mais conseguido da Grande Lisboa (apesar de estar ainda incompleto) - num bairro que pode ser classificado como um sector de uma Cidade Moderna.
Devido ao seu carácter avançado, a Codivel tem sido um bairro incompreendido e até desprezado. É de facto muito diferente da cidade a que estamos mais habituados, das ruas, das praças e dos quarteirões. Para essa incompreensão também contribui uma localização algo ingrata - a Codivel está "entalada" entre uma via rápida (IC 22), uma zona industrial e um bairro de génese ilegal - bem como a orografia, que não favorece a acessibilidade a pé. O nome também não ajuda...
Contudo, para se compreender plenamente uma intervenção urbana como a Codivel é necessário perceber o contexto em que foi elaborada a Carta de Atenas, bem como conhecer minimamente o estilo de vida do seu principal mentor e divulgador, Le Corbusier ou o arquitecto/urbanista mais influente do Séc. XX. Abordarei esse vasto tema, de forma breve, no próximo "post".

21 agosto 2007

Ainda em torno do Centro Histórico

Alguns prezados leitores têm-me pedido para que volte a tecer algumas considerações em torno do Centro Histórico de Odivelas. Sob pena de repetir argumentos já aqui avançados em Fevereiro último, vou tentar transmitir aquilo que penso sobre tão interessante assunto, de forma, espero, mais clara e acertiva.
Na Grande Lisboa, ou seja, na parte norte da Área Metropolitana de Lisboa existem 10 cidades. A saber, tratam-se dos seguintes povoados, por ordem decrescente de dimensão populacional (dados para 2001): Lisboa (560 mil habitantes), Amadora (176 mil), Agualva-Cacém (82 mil), Queluz (78 mil), Odivelas (51 mil), Alverca do Ribatejo (28 mil), Póvoa de Santa Iria (24 mil), Sacavém (18 mil), Vila Franca de Xira (17 mil) e Loures (16 mil). Existem ainda algumas vilas que poderiam ser cidades mas que por razões históricas (Sintra) ou por um estranho "mix" de snobismo e espírito anti-urbano recusam essa classificação (Oeiras e Cascais).
Desta forma, Odivelas é a quinta cidade mais populosa da Grande Lisboa, caracterizando-se também por pertencer ao restrito subconjunto de cidades da AML Norte com mais de 50 mil habitantes, que são apenas cinco (notar que Alverca, a sexta cidade mais populosa, tem sensivelmente metade dos habitantes de Odivelas).
Ora, de todas estas cidades, só Lisboa, Queluz e Odivelas possuem centros históricos com património classificado de grande interesse. Se Lisboa é um caso à parte, Queluz não é - os leitores perdoem-me a sinceridade - comparável a Odivelas. De facto, o Palácio Nacional de Queluz, não lhe tirando mérito (gosto muito da escadaria Robillon!), não passa de uma pobre e triste imitação do maior palácio da Europa (Versalhes), sinal da pequenez e da parolice do nosso país, ainda por cima construído seguindo um estilo arquitectónico do barroco tardio, por sinal de gosto bem duvidoso: o Rococó. O Mosteiro de Odivelas, mesmo tendo sido muito castigado pelo grande terramoto de 1755, carrega um passado único, tem um monarca sepultado (D. Dinis) e a respectiva rainha (ainda por cima, santa) e é só (cerca) de 500 anos mais velhinho que o citado palácio nacional (foi fundado em 1295, enquanto que Queluz é datado de finais do Século XVIII).
Desta forma, tudo o que se faça no Centro Histórico de Odivelas tem que honrar este legado do passado, tem que o glorificar, tem que conferir a Odivelas a posição que lhe pertence desde tempos bem remotos.
Odivelas não é um sítio qualquer - basta dar um pequeno exemplo: o Palácio do Correio-Mor, o mais importante do Concelho de Loures e um dos mais emblemáticos dos arredores de Lisboa (e do País), foi construído em antigas terras das monjas de Odivelas. Os seus domínios foram, aliás, dos mais ricos que se conheceram no antigo Termo de Lisboa.
O que está em causa no Centro Histórico de Odivelas não é, do meu ponto de vista, um problema só de dinheiro. Bem sei que existe um importante vazio urbano que importa requalificar, entre os Paços do Concelho e o novo Centro de Exposições (o Dr. Varges tinha um projecto de uma grande praça urbana para esse espaço, para ser pago pelo PROQUAL mas que tarda em avançar). Mas há muitas outras coisas que se podem fazer, que exigem mais trabalho do que dinheiro. Vou só dar alguns exemplos, sem propósitos de exaustividade:
1. O Mosteiro de S. Dinis permanece muito fechado sobre si próprio, é quase impenetrável. Era fundamental trabalhar com o Instituto de Odivelas no sentido de permitir a sua visitação pelo público em geral;
2. Esse mosteiro bem como o largo fronteiro (de D. Dinis) são locais muito interessantes para a realização de eventos culturais, como concertos de música erudita ou saraus de poesia; porque será que não são melhor aproveitados nesse sentido?
3. Odivelas tem, um pouco como a Amadora, algo fantástico, que se está a perder, infelizmente, nas cidades portuguesas: vida de rua. Ora, é fundamental "encaminhar" essa vida que ainda existe para o Centro Histórico. Para tal, parece-me essencial limitar, ou mesmo vedar, o uso do automóvel nessa zona antiga. Tal poderia motivar o surgimento de cafés, de esplanadas, de iniciativas culturais bem como a animação do comércio tradicional. Ora, a nova Alameda do Porto Pinheiro cria, de alguma forma, uma variante ao Centro Histórico, faltando, porventura, apenas uma boa ligação das Colinas do Cruzeiro aos Pombais. Mesmo que não se consiga a curto prazo vedar o acesso dos carros ao Centro Histórico, por que não fazê-lo, por exemplo, aos Domingos (como no Terreiro do Paço)?
4. É fundamental cuidar dos espaços verdes existentes. Foi dado um bom exemplo nesse sentido recentemente: o jardim dos Paços do Concelho foi arranjado com pouco dinheiro, muita imaginação e ... recorrendo a blocos de basalto provenientes da enigmática Islândia (ver foto). E esta, hem!

05 agosto 2007

O Pobre Homem Rico

A Colecção "Taschen Público Arquitectos", agora em segunda edição, é já um clássico do Verão português. Ando entretido com o livro dedicado a Adolf Loos, o arquitecto vienense pioneiro do Modernismo que viveu entre 1870 e 1933.
Vale a pena ler o ensaio que escreveu em 1900 intitulado "O Pobre Homem Rico", que é reproduzido na íntegra nesse livro. Começa desta forma:

"Quero contar-vos a história de um pobre homem rico. (...) certo dia, este homem disse para si próprio: «Tens dinheiro e bens, uma mulher fiel e um rancho de filhos que causaria a inveja do trabalhador mais pobre. Mas és feliz? Olha, há pessoas que não têm as coisas pelas quais é invejado, mas as suas preocupações são dissipadas por uma fada mágica: a arte! Mas para ti o que é a arte? Não conheces sequer um nome de um artista. Qualquer pretensioso que apareça à tua porta, o teu mordomo abri-la-á. No entanto, jamais recebeste arte em tua casa! Sei com certeza que ela não virá. Mas agora procurá-la-ei. Será recebida em minha casa como se de uma rainha se tratasse.» Era um homem poderoso, qualquer projecto em que metesse mão fá-lo-ia com vigor e energia. Era também desta forma que fazia negócios. E assim, no mesmo dia recorreu a um famoso arquitecto de interiores, e pediu-lhe: «Traga-me arte, arte para dentro da minha casa! O preço não é problema!»".

O resto do texto, bem aplicável à realidade social portuguesa do Séc. XXI, deixo a cargo do leitor. O livro pode ser adquirido (ou encomendado) em qualquer banca e custa só 4,90 euros. Vale mesmo a pena...