Esclarecimentos
Disse o prezado leitor Carlos Pinto a propósito do meu "post" Palmeiras (II):
"Que demagogia pura e dura!!
O que se fazia? Não se plantavem palmeiras ou outras árvores na avenida em questão? Derrubava-se o poste da EDP que está lá ao fundo?
Esta não dá para compreender...
Qual é a sua proposta? Plantar árvores onde não haja qualquer vestígio de civilização?
Com lógicas destas continuavamos a viver nas cavernas...
Importa-se de fundamentar ou dizer onde quer chegar, p.f.?"
Muito obrigado pelo seu comentário. Reconheço que me tem faltado inspiração, e tempo, para explicar melhor aquilo que penso.
Vamos por partes.
Em primeiro lugar, as cidades sempre me fascinaram na sua multiplicidade de edifícios, espaços públicos, actividades económicas, raças e credos. As verdadeiras cidades são os espaços mais tolerantes que existem, onde diferentes classes sociais e culturas conseguem coexistir, onde cada um pode muito bem fazer e pensar aquilo que bem lhe apetecer (naturalmente, com certos limites), onde a liberdade individual pode ser exercida com alguma margem de manobra. As cidades são também fascinantes porque estão sempre a mudar e são imperfeitas e incompreensíveis por natureza. Por exemplo, a Economia tem alguma dificuldade em explicar o gregarismo das pessoas e das actividades económicas, remetendo muitas vezes as suas análises para o conceito difuso de "economias de aglomeração".
As cidades são inevitáveis e temos que aprender a gostar delas, algo que nem sempre é fácil em Portugal, que "queimou" as etapas da transição de uma sociedade fundamentalmente rural para uma sociedade fundamentalmente urbana talvez depressa demais, em apenas 20-30 anos. Odivelas é um território fascinante porque encerra "cidade" na verdadeira acepção da palavra e porque permite compreender, de forma muito clara, as tensões que essa transição gerou e continua a gerar no espaço e nas gentes (vejam-se, por exemplo, as AUGIs).
Em segundo lugar, não tenho nada contra as palmeiras que são, tal como as cidades, diversas e fantásticas, para além de nos transportarem para os imaginários mourisco e californiano - duas referências importantes na maneira tipicamente portuguesa de estar na vida. Por isso tenho vindo a divulgar, não com a regularidade que gostaria, alguns exemplares que embelezam o nosso concelho (e são muitos, felizmente!).
Em terceiro lugar, considero que as zonas verdes, bem como outras zonas sensíveis em termos ecológicos (por exemplo, as ribeiras), devem estruturar a nova cidade que se vai, inevitavelmente, construindo. Esta minha perspectiva exige um pequeno enquadramento para ser plenamente compreendida.
Em finais do século XIX, com a plena afirmação da revolução industrial, a cidade dita tradicional, planeada ou não mas tendo como principais elementos estruturantes a rua e o quarteirão, apresentava sinais de marcada doença: grande promiscuidade de usos do solo tipicamente incompatíveis (por exemplo, indústrias fortemente poluentes e habitação), insalubridade, congestionamento. Como resposta a esse estado das coisas surgiram, na transição do século XIX para o século XX, as cidades-jardim - de baixa densidade, com predominância de espaços verdes e com unidades de vizinhança estruturadas por impasses - e, já em pleno século XX (anos 20-30), a cidade imaginada pelo Movimento Moderno.
O apartamento constitui a base da cidade moderna, sendo agrupado em blocos de habitação dispostos livremente no terreno tendo em vista maximizar a insolação. A construção em altura, que a invenção do elevador potencia e que o betão possibilita com economia, é vista pelo Movimento Moderno como uma oportunidade de maximização do espaço público que fica, assim, mais liberto para as árvores e para os equipamentos colectivos, nomeadamente, de lazer como os complexos desportivos. A cidade deixa de ser estruturada pela rua e pelo quarteirão e passa a sê-lo por um sistema hierarquizado de vias de comunicação, pensado para a circulação do autómovel (entretanto, em plena afirmação), e por amplos espaços verdes. "Céu, árvores, betão e vidro" eram, por ordem decrescente de importância, os elementos do urbanismo moderno, de acordo com o mais influente arquitecto e urbanista do Movimento Moderno, Le Corbusier.
Os modernistas acreditavam, com alguma ingenuidade, que o planeamento e a construção padronizada seriam capazes de garantir o bem estar e a felicidade dos habitantes das cidades. Contudo, a cidade pensada pelo Movimento Moderno encerra vários problemas: tende a criar uma certa melancolia, que pode descambar em depressão generalizada, pode criar "guetos" (presentes ou futuros) quando o zonamento foi praticado com intensidade e depende muito da qualidade arquitectónica dos edifícios bem como da qualidade e da manutenção periódica dos espaços verdes, com os respectivos custos associados. Ou seja, o sucesso da cidade moderna depende muito da boa vontade dos promotores, dos construtores e das autarquias: em vez de "Céu, árvores, betão e vidro", rapidamente se passou a ter "muito betão, algum vidro, pouco céu e poucas ou nenhumas árvores". Subir a encosta de Santo António dos Cavaleiros em direcção à Cidade Nova ilustra bem como é tão fácil deturpar o urbanismo moderno, com os resultados conhecidos de todos.
À cerca de 10-15 anos, os elementos da cidade dita tradicional, como a rua, a avenida, a rotunda, o quarteirão e a praça (menos, esta última) têm regressado em força às urbanizações que se têm feito de raiz, pelo menos, na Área Metropolitana de Lisboa. A reacção aos problemas do urbanismo moderno não são a única explicação para esse fenómeno: a cidade de morfologia mais tradicional, se é verdade que propicia o surgimento de espaços com maior "urbanidade", quando associada à construção em altura garante maiores densidades (leia-se, receitas para as autarquias) e tem ainda a grande vantagem de custar menos a manter porque se podem reduzir os espaços verdes a pequenos jardins (ou canteiros) complementados, por vezes, com o ajardinamento das principais artérias ou com "parques urbanos" (mais mediáticos e propiciando o conhecido "corte de fita").
As urbanizações que se têm feito nos últimos anos em Odivelas seguem, em geral, esta via de pensamento. O Jardim da Radial, que de jardim não tem muito, é um bom exemplo: uma massa densa de prédios intercalada com dois ou três jardins bem cuidados para ajudar a compor o ramalhete. Ou a mais conseguida Quinta Nova, com os seus interessantes quarteirões abertos num dos lados, que constrastam bem com o Chapim, de inspiração mais modernista.
Porto Pinheiro adopta, em geral, este tipo de abordagem mais tradicional de cidade mas apresenta vários problemas: grande densidade; ausência de espaços verdes significativos (até agora, só se vislumbram as margens de uma ribeira); supostas unidades de vizinhança em banda maximizando o aproveitamento do declive; 3 linhas de muito alta tensão misturadas no meio dos prédios e das rotundas em vez de estarem ou enterradas ou balizadas por um espaço canal verde; proximidade de um centro comercial que poderá tornar inviável muito do pequeno comércio tradicional de bairro que se está a tentar implementar; palmeiras meramente decorativas para iludir o morador e o visitante, tal como os bons materiais em geral empregues na construção.
É isto o futuro que queremos para as nossas cidades? Eu acho que não!
Talvez devido à minha formação em Economia, em que o racionalismo cartesiano está sempre presente, a cidade (e a arquitectura) moderna exerce sobre mim grande fascínio. Experiências como o Bairro das Estacas, em Alvalade, Nova Oeiras, certas partes dos Olivais ou a Portela de Sacavém atraem-me particularmente, tal como a ideia, muito modernista e nada enraizada em Portugal, de que a cidade do subúrbio pode ser um local fantástico para se viver, não muito longe do centro mas suficientemente longe para se descomprimir ao fim-de-semana com as árvores sempre por perto.
Contudo, reconheço que uma cidade completa e viva necessita de ruas, de praças, de locais onde a vida fervilha e o inesperado acontece. Por isso, defendo que cidade deve conciliar elementos de desenho urbano mais tradicionais com outros de cariz mais moderno, como acontece, de forma muito feliz, no Bairro de Alvalade, em Lisboa - porventura, a última grande experiência urbanística de que Portugal se pode orgulhar.
Curiosamente, também em Odivelas existem esses vários tipos de cidade dada a sua já longa história de (sub)urbanização. É também isso que a torna um interessante estudo de caso, nem sempre fácil de analisar e de compreender na sua plenitude.
4 Comments:
Caro Pedro Afonso Fernandes:
Agradeço a sua atenção e respectiva resposta.
Embora o meu comentário apenas pretendesse um esclarecimento sobre um facto concreto e individual, ele mereceu, da sua parte, um autêntico sumário de uma tese de pós-graduação ou de mestrado em urbanismo. Ainda bem. Deu-lhe, assim , oportunidade de postar talvez um dos melhores textos deste blog. Poderá, é certo, ser considerado demasiado académico ou teórico. Mas não é a teoria a "mãe" de todas as práticas?
Cumprimentos,
Carlos Pinto
maximPedro Afonso:
Encontrei os seus textos já em 2008, mas vou seguí-los com atenção, porque me ensinam coisas que eu não sei e que sentia mas não sabia traduzir em palavras tão claras e com tanta racionalidade. Gosto. Concordo. E depois, fala da nossa terra, tem explicações para os casos concretos e consola-me por verificar que estão a chegar a Odivelas pessoas com uma escolaridade de nível superior. Temo a ignorância, pelos consequências que tem para a comunidade. Obrigada, Maria Máxima
Pedro Afonso:
Agradam-me os seus textos porque falam de situações da nossa terra e parece-me lógica a sua argumentação.Partilha connosco o seu conhecimento, o que me diz que dentro de si habita um Cidadão e Odivelas preciso de muitos Cidadãos.
Parabéns
Maria Máxima
Pedro Afonso:
Essa ideia de entrar em ano sabático não é nada boa, nem é admissível para uma pessoa com o nome de Pedro Afonso. Esse nome implica muitas responsabilidades. Só lhe digo porquê, quando
vir a continuação.
Votos de bom ano e muita saúde.
Maria Máxima
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