03 dezembro 2006

Cafés, cheias e periferias

Escreveu José Pacheco Pereira, na sua última crónica no Público ("Sentimentos misturados", quinta-feira, 30-11-2006; também publicada no Abrupto em 1-12-2006), que no final da década de 60 em Lisboa "ainda havia «cidade», dizia Jorge Silva Melo [numa entrevista concedida à RTP], ainda havia bairros, ainda havia cafés, teatros, cinemas. Nos cafés, lugar emblemático do convívio permitido no tardo-salazarismo, descreve-se o ambiente do Monte Carlo, da Grã-fina, do Vavá, com os seus grupos diferenciados e as suas hierarquias".
Mais à frente Pacheco Pereira refere que "Jorge Silva de Melo falou também desse momento único da experiência estudantil militante dos anos 60 que foi a tragédia das inundações, quando centenas de estudantes (...) foram ajudar as vítimas ainda a desgraça estava em curso, nas operações de salvamento, de recolha dos mortos, da ajuda aos vivos, de salvamento do pouco que sobrava entre a lama. Nessa intempérie, não muito diferente da que caiu na semana passada, morreu um número desconhecido de pessoas. A censura nunca permitiu que se soubesse o número exacto e muita gente desapareceu desde então". Refira-se que só na região de Odivelas, uma das mais atingidas pela grande cheia da noite de 25 para 26 de Novembro de 1967, estima-se que tenham morrido mais de 300 pessoas!
Refere ainda Pacheco Pereira que "Jorge Silva Melo fala da descoberta desde mundo de pobreza suburbana, que se acentuava no reverso do «milagre económico português» que estava em curso". Relembre-se que é durante o consulado de Marcelo Caetano que Portugal atinge as mais elevadas taxas de crescimento do PIB conhecidas. E continua: "Mas Jorge Silva Melo está (como eu) entre dois mundos: o que gostamos é o que desgostamos. Nas suas memórias entrevistadas está uma contradição que não se sabe resolver. Ele gosta da «plebe», da «canalha» de Gomes Leal, da malta suburbana que fala o português do Kuduro, e queixa-se ao mesmo tempo que ninguém vai ao teatro nesta «não cidade» em que vivemos. Claro que ninguém vai ao teatro, claro que acabaram os cafés (pelo menos em Lisboa), claro que se desertificaram os bairros (...) exactamente porque os filhos deserdados das cheias, os filhos dos operários do Barreiro, os filhos das criadas de servir (...) mandam no consumo e o mundo que eles querem é muito diferente. Eles entraram pelos cafés dentro e transformaram-nos em snackbars e em lanchonetes, entraram pelas televisões e querem os reality shows, entraram pela "cultura" e pela política e não querem o que nós queremos, ou melhor, o que nós queríamos por eles".
Penso, com os limites da minha inteligência, que há aqui alguns raciocínios algo apressados. Primeiro, os cafés ainda não acabaram em Lisboa. O mais antigo café de Lisboa - o Martinho da Arcada (cf. Marina Tavares Dias, Lisboa Desaparecida, Quimera, 1987) - lá se vai aguentando, como restaurante. Também o Nicola e a Brasileira do Chiado continuam de portas abertas e cheios de gente. Esse lugar horroroso chamado Mexicana também. E o Império também ainda não morreu, à custa da sua reconversão, dizem (ainda não lá fui), em "Cabaret da Coxa". Naturalmente que houve e há perdas dolorosas a reportar - como a saudosa Capri ou a Pastelaria Roma. Mas também é verdade que têm surgido alguns cafés simpáticos e cuidados em Lisboa, às vezes conciliando a faceta de café e de bar, apesar de muitas vezes adoptarem um formato "franchisado", o que lhes retira algum encanto e genuinidade.
Em segundo lugar, se é verdade que a matriz social da frequência desses e dos demais cafés de Lisboa deverá ter mudado muito desde os finais da década de 60, tal deve-se, talvez menos aos citados fenómenos de transformação das classes "dominantes", mas sobretudo ao despovoamento da Capital bem como ao aprofundamento da sua especialização em actividades de serviços. Os cafés de Lisboa são cada vez mais espaços para "comer qualquer coisa" ao almoço durante a semana de trabalho e menos para conviver, para ler e para estudar. Lembro-me, dos meus tempos de estudante, ser raro o café lisboeta onde era permitido estudar. Havia, aliás, uma "trupe" que estudava em cafés (onde eu me incluía) e que se conhecia por frequentar os dois ou três sítios onde essa prática era tolerada.
Em terceiro lugar, daquilo que vou conhecendo dos subúrbios de Lisboa, parece-me que o que terá acontecido foi uma transferência dos cafés de Lisboa para a periferia, acompanhando os próprios movimentos da população residente. A questão é fundamentalmente económica: os cafés são serviços de proximidade, que tendem a acompanhar a procura, ou seja, os locais para onde as pessoas foram viver, e não a manter-se em determinado lugar central, esperando que as pessoas efectuem deslocações longas até eles. Quem está disposto a andar, regularmente, 20 ou 30 minutos de carro para tomar café? O Califa, em Benfica, não foi e é um exemplo desse tipo de deslocalização do centro para a periferia? Ou a Casa dos Cafés da Portela - esse fenómeno genuinamente suburbano, que já foi exportado para tudo o que é centro comercial e até para o Bairro da Graça (curiosamente, também um subúrbio operário de outros tempos)?
Penso, sinceramente, que os cafés foram para onde está a vida, que é nos subúrbios e em algumas zonas mais periféricas do Concelho de Lisboa. Ainda outro dia Eduardo Prado Coelho, na sua crónica habitual no Público, referia esse fenómeno.
Odivelas é um interessante "case study" neste âmbito: cafés acolhedores, genuínos e simpáticos como "La Maison du Café" ou "Café & Companhia", ambos no Chapim, não se encontram com facilidade em Lisboa. Ou os incontornáveis "O Forno da Cidade" (Ribeirada) ou "Viriato" (Jardim da Radial - Ramada), também com serviço de pastelaria. Em particular, neste último é possível adquirir aqueles que são provavelmente os melhores pastéis de nata que se fabricam em Lisboa e arredores, que fazem corar os centenários Pastéis de Belém.
Entendo aqui como café um espaço de lazer, com mesas e cadeiras e, eventualmente, esplanada, onde o utente se sente em casa, onde não sente "pressing" para se ir embora, onde pode ir acompanhado dos amigos, dos jornais e dos livros, onde pode discutir e desenvolver ideias e aprender olhando e sendo visto.
Os cafés estão profundamente enraizados nos hábitos do portugueses e dificilmente desaparecerão por completo. Não disse Almeida Garrett que bastava entrar no café para se conhecer a terra onde se estava?
P.S. 1 - Uma das modas deste Natal são as máquinas de café a 250 euros a peça. Será um prenúncio do fim dos cafés, mesmo nos subúrbios, ou apenas mais uma "nova-riquisse" bem à portuguesa?
P.S. 2 - No Abrupto, Pacheco Pereira ilustra o seu "post" "Sentimentos misturados" com algumas fotografias das cheias da década de 60. Se não é Odivelas, imita muito bem.

1 Comments:

At 2:26 da manhã, Anonymous Anónimo said...

so faltou mencionares o Beltok...abraço

 

Enviar um comentário

<< Home