21 março 2008

As hortas



Como lisboeta (acho) genuíno, sempre tive um certo fascínio pelo imaginário de fora de portas. Por um conjunto de memórias (cada vez menos) colectivas que nos remetem necessariamente para quintas, conventos e mosteiros, para patuscadas em retiros com parras e bancos corridos, para guitarradas e desgarradas pela noite fora (não morreu a grande Severa de indigestão, após um repasto de pombos recheados?), para esperas e largadas de touros, para salteadores e crimes à beira da estrada (como o de Sintra), para mulheres de má vida e "tocas" entre olivais, para paisagens bucólicas de outeiros, riachos e hortas.
Como nos conta Marina Tavares Dias, no primeiro volume da sua conhecida saga Lisboa Desaparecida (datado do longínquo ano de 1987, Quimera Editores):
"Até às primeiras urbanizações do século [XX], os arredores eram, quase sempre, ocupados pelas hortas. (...)
"As hortas correspondiam a um tipo de divertimento muito popular, servido pelo gosto que todos os lisboetas possuem pelo campo. Por volta de 1900, o passeio às hortas era coisa sacramental.
"O hábito remonta, contudo, ao século XVIII (pelo menos). Em escritos da época, fala-se em meijoadas nas hortas da Mouraria e Xabregas. Em pinturas do século XVIII, encontramos bailaricos e cenas de amor tendo como fundo os quintais de Benfica ou o Aqueduto das Águas Livres. As hortas eram o passeio de fim-de-semana para todos os que não tinham uma quinta ali para os lados da Calçada de Carriche. Faziam as delícias sem comportar grandes despesas".
Interrompo a prosa de Marina Tavares Dias para notar, junto dos leitores, como ter uma quinta aqui para os lados de Odivelas já foi coisa de gente fina e bem na vida...
"Como tradição, o passeio às hortas adquire a sua excepcional popularidade no decorrer do século XIX. As romagens começavam logo no domingo a seguir à Páscoa e prolongavam-se até meados do Outono.
"Pelo caminho dançava-se nos bailaricos organizados nos célebres retiros, faziam-se barricadas cujo prémio era um almoço pago, cantava-se e jogava-se pelas sombras da estrada. A Lisboa popular partia sem destino certo, para os lados do Lumiar ou do Areeiro, com paragem já estipulada e obrigatória nos famosos retiros: o Perna de Pau, o José dos Patacos, o Manuel dos Passarinhos, o Ferro de Engomar, o Colete Encarnado, o Pedro dos Coelhos, o Quebra Bilhas [ao Campo Grande].
"E nos retiros afamados, juntavam-se fidalgos, fadistas e toureiros. A tradição regista o nome de alguns animadores notáveis, que cantavam e dançavam até de madrugada. O mais famoso parece ter sido Manuel Serrano. Não havia retiro onde o não conhecessem a ele e à sua guitarra".
Com o avanço definitivo, e sem hesitações, de Lisboa para Norte (veja-se a pujante Alta de Lisboa), é em lugares como Odivelas, Famões, Caneças ou Montemor que os lisboetas genuínos - não os "importados" recentemente e que "não percebem nada de horta" - procuram esse fascínio mais ou menos perdido pelo campo, por uma certa simbiose entre couves e cosmopolitismo.
Falando de Montemor, os prezados leitores já conhecem o vizinho (e espectacular) blogue: montemor-loures.blogspot.com?
(O vício da escrita fez-me voltar a estas lides. Vamos ver se resulta...)

1 Comments:

At 4:48 da tarde, Blogger António Serra said...

Caro Pedro Fernandes,

Descobri "quase por acaso" o seu blog. Gostei e virei cá mais vezes...

Espero que continue o bom trabalho!...

António Serra

 

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