30 setembro 2007

O Vale da Morte

Os acontecimentos de Sacavém, hoje de manhã, fazem-nos lembrar a perigosidade das zonas baixas da bacia hidrográfica do Rio Trancão, cuja foz fica junto a esse povoado do Concelho de Loures.
O vale que se estende da Paiã até Loures é particularmente perigoso. Na próxima noite de 25 para 26 de Novembro "comemora-se" uma efeméride muito triste: os 40 anos das grandes cheias de 1967, que mataram - segundo se sabe - cerca de 500 pessoas na Grande Lisboa, 300 das quais no território do actual Concelho de Odivelas. Encontraram a morte na lama muitos dos que viviam nas margens do Rio da Costa e das ribeira de Odivelas e da Póvoa de Santo Adrião. Foi um acontecimento marcante na época, que mobilizou muito voluntários (nomeadamente, estudandes universitários), pessoas que, pela primeira vez, tomaram contacto com a miséria que grassava (e grassa) nos arredores de Lisboa, com o Portugal que nos envergonha a todos.
A Urmeira foi um dos locais mais fustigados por essas mortíferas cheias. É curioso que, ainda hoje, a Urmeira é um daqueles lugares que se evita à noite, de encruzilhadas, de estradas sombrias. E de quintas insólitas.
Outro dia, vinha eu dos lados do Bairro Padre Cruz pela Serra da Luz e, como é típico, parei o carro antes do congestionado e perigoso cruzamento com a Estrada da Paiã (para quando uma rotunda ou semáforos?). E não é que, do lado esquerdo, dou com a Quinta do ... Enforcado! Que a Urmeira foi lugar de morte, já eu sabia. Que tinha uma quinta dedicada a um enforcado, não fazia a mínima ideia!
Quem teria sido esse desgraçado? Alguém que perdeu tudo também com uma situação de cheia, enforcando-se em pleno desespero? Ou simplesmente um bandido famoso de outras eras? Que estranho...
Podemos não saber quem foi o enforcado da Urmeira. Mas não podemos fazer de conta que não sabemos que as cheias são fenómenos naturais, que acontecem com uma determinada periodicidade. E que, mais tarde ou mais cedo, vai haver desgraça no Vale de Odivelas-Loures, o "Vale da Morte" da Grande Lisboa.

Consequências das cheias de 1967 na zona da Urmeira / Pontinha (in As Cheias de Novembro de 1967 em Lisboa)

P.S. - Desconheço se está prevista alguma evocação dos 40 anos da noite de 25 para 26 de Novembro de 1967. Talvez não fosse má ideia uma iniciativa oficial que relembrasse tão triste acontecimento, tendo em vista evitar que semelhante tragédia se repita num futuro, esperemos, longínquo.

25 setembro 2007

A cidade e as serras

Grande parte da "piada" da Cidade de Odivelas está no facto de ser rodeada por serras. Se é verdade que, em geral, as mesmas estão muito longe de estar bem tratadas - as dávidas da natureza atrairam, nomeadamente, muita habitação ilegal - também é verdade que as serras que cercam Odivelas encerram e escondem factos insólitos e algumas surpresas.
Há uns dias tive a experiência extraordinária de ter estado numa aldeia para lá das serras - mas a menos de 15 minutos da minha casa (e a cerca de 25 minutos do Campo Grande) - numa autêntica festa do Portugal rural profundo. Havia bailarico com a cassete do Quim Barreiros, havia febras salgadas, havia cerveja sem copo, havia campo a perder de vista (ver foto), havia gente genuína e com hábitos ainda algo comunitários, que conta estórias do tempo em que Odivelas era "terra de lavoura".
Como é isto possível em pleno Séc. XXI e numa grande área metropolitana? Falta-me bagagem sociológica para explicar tão interessante fenómeno da periurbe lisboeta.
Em todo o caso, fiquei com a estranha sensação de ter estado muito, muito longe, mas ao mesmo tempo perto de casa e de uma certa portugalidade, algo pimba mas muito nossa. Talvez o que falte a Portugal (e a Lisboa) é deixar-se de cosmopolitismos parolos e assumir-se como é, com genuidade e sem complexos de inferioridade. Não estava o grande encanto de Lisboa nos seus bairros populares e nas respectivas praxes?

16 setembro 2007

A cidade neo-barroca (II)

A urbanização “Jardim da Radial” é, porventura, a primeira grande operação urbanística no Concelho de Odivelas que podemos classificar como neo-barroca, cujo início da construção remonta à segunda metade da década de 90. Localiza-se na Freguesia da Ramada, junto ao limite Norte da Cidade de Odivelas, sendo servida de forma directa por um nó do IC 22, o que a torna, de alguma forma, uma “Edge City” (Silva, Elisabete A., 2002, “Cenários de Expansão Urbana na Área Metropolitana de Lisboa”, Revista de Estudos Regionais – Lisboa e Vale do Tejo, 2.º Semestre, Lisboa, INE).

O relevo do sítio é particularmente movimentado, caracterizando-se por encostas próximas da cumeada da Serra da Amoreira com pendente acentuada, que dificultam a locomoção a pé. Não obstante, o desenho urbano adoptado no “Jardim da Radial” privilegiou a vida de rua, sendo estruturado por um conjunto de avenidas tipicamente interceptadas por outras avenidas ou ruas através de rotundas ajardinadas.

Em particular, a sua principal avenida (Liberdade), onde se localiza grande parte do comércio de bairro, é particularmente difícil de vencer a pé. Essa avenida possui uma orientação NW-SE que, dada a altimetria do local, possibilita, a quem a desce, uma vista magnífica sobre Lisboa e as serras da Península de Setúbal. Sensivelmente a meio da Avenida foi colocada uma rotunda com fonte luminosa (Tito de Morais) da qual parte, em entroncamento, uma rua (Manuel de Arriaga) que conduz, por sua vez, a outra rotunda ajardinada (Francisco Sá Carneiro) através da qual se acede à urbanização via IC 22. No enfiamento da Rua Manuel de Arriaga, junto à Rotunda Francisco Sá Carneiro, foi implementada uma igreja.

Quem se desloca, nomeadamente de automóvel, ao longo deste sistema de vias e rotundas tem uma experiência estética bem próxima daquela que caracteriza a cidade barroca, dados os elementos de interesse (rotundas, igrejas, fontes luminosas, serras) colocados estrategicamente nos pontos focais das vias de circulação. O jogo das perspectivas foi claramente privilegiado face aos aspectos funcionais: o sistema viário IC 22 – Rotunda Francisco Sá Carneiro – Rua Manuel de Arriaga – Av. da Liberdade não é apenas o elemento estruturante de uma urbanização, é também o principal acesso Norte à Cidade de Odivelas. Desta forma, por questões estéticas e de imagem da cidade, o tráfego automóvel de passagem é misturado voluntariamente com o tráfego local, com consequências nefastas em termos de congestionamento de tráfego e de segurança para os peões.

É importante notar que a citada Av. da Liberdade não é apenas um local de concentração de comércio mas também a via de acesso aos equipamentos escolares públicos que servem a zona Norte de Odivelas (Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos e Escola Secundária), sendo grande o risco de atropelamento de crianças e jovens também devido à acentuada pendente da Avenida, apesar dos esforços desenvolvidos pela Junta de Freguesia da Ramada (semáforos de controlo de velocidade e painéis informativos de zona escolar).

Apesar do seu nome sugerir o contrário, o “Jardim da Radial” não tem qualquer ponto de contacto com a cidade imaginada por Ebenezer Howard. De facto, ao longo de uma estrutura viária muito tradicional, foram implementadas bandas e torres, por vezes com 12 andares. Nem sequer se recorre ao quarteirão, elemento morfológico caro à “cidade tradicional”: as bandas e as torres são dispostas continuamente ao longo das ruas corredor, sem logradouros, numa estratégia clara de maximização dos lotes.

Os espaços verdes são eminentemente cénicos, limitando-se fundamentalmente às rotundas e a algumas zonas intersticiais entre os lotes, apesar de existirem dois pequenos jardins de fruência particularmente agradável (o sistema de vistas para isso muito contribui), dotados de equipamento lúdico infantil.

08 setembro 2007

A cidade neo-barroca (I)


Nos últimos meses tenho vindo a analisar neste blogue o que designo por "A Cidade Radiosa de Odivelas", ou seja, o espaço urbano que se desenvolve desde a Codivel até à Quinta do Mendes, fortemente influenciado pelos princípios do Urbanismo Moderno. Fi-lo não apenas pelo interesse do tema em si, mas sobretudo com o propósito pedagógico de mostrar aos leitores como toda essa área é, apesar da sua qualidade algo irregular e de uma certa falta de sentido de conjunto (por culpa da justaposição de vários loteamentos pouco articulados entre si), urbanisticamente mais interessante do que a generalidade das urbanizações que se têm desenvolvido nos últimos 10-15 anos no Concelho de Odivelas.
Não estando o tema da "Cidade Radiosa" esgotado (ainda vou escrever, pelo menos, sobre as "unidades de habitação" Hotelcar e Horizonte e sobre o Chapim), é chegada a altura de começar a partilhar com os prezados leitores alguns argumentos que já tive oportunidade de apresentar e discutir no âmbito da First International Conference of Young Urban Researchers (FICYUrb), que se realizou nos dias 11 e 12 de Junho de 2007 no ISCTE.
Basicamente o que se está a passar em Odivelas, e um pouco por todo o lado, mesmo em lugares do Portugal urbano remoto, é o regresso à cidade dita tradicional, das avenidas coroadas por pontos de interesse focal - tipicamente rotundas - e, por vezes mas nem sempre (como veremos com exemplos concretos), organizada em quarteirões. É uma cidade muito diferente daquela que tenho vindo a descrever em "A cidade radiosa", onde os espaços verdes são normalmente decorativos e já não estruturantes, onde os equipamentos colectivos deixaram de ser uma prioridade, onde o trânsito deixou de circular em vias hierarquizadas para se acumular em filas intermináveis e pondo em risco, muitas vezes, a segurança de crianças e adultos, dada a promiscuidade dos vários tipos de tráfego (local, de atravessamento, de peões).
As causas do regresso a esse tipo de cidade é uma longa história, que nos remete necessariamente para a crise do Urbanismo Moderno, que se agudiza na década de 70, não apenas em Portugal mas um pouco por todo o mundo. Tal fenómeno levou, a partir da década de 80, muitos urbanistas - sobretudo arquitectos - a enveredarem por um certo regresso ao passado, revidendo, por vezes com algum exagero, formas típicas da cidade barroca e/ou da cidade oitecentista haussmanniana (Lamas, José, 1992, Morfologia Urbana e Desenho da Cidade, Lisboa, FCG/JNICT).
A cidade barroca, encenada, das longas avenidas coroadas por pontos de interesse monumental, desenvolve-se a partir do Séc. XVII na sequência da invenção da perspectiva e do coche – o carro a cavalo que proporcionava velocidades “alucinantes” – bem como de uma época de excesso nos costumes e nas artes (Munford, Lewis, 1998, A cidade na história. Suas origens, transformações e perspectivas, São Paulo, Martins Fontes). Desta forma, o regresso a este tipo de morfologia urbana na transição do Séc. XX para o Séc. XXI não pode deixar de estar associado à democratização do automóvel (o coche dos tempos modernos) e aos hábitos que se criaram em termos da sua utilização frequente, bem como à hiper-valorização da imagem na sociedade de consumo e nos estilos de vida pseudo-modernos - tudo factores que favorecem uma certa encenação do espaço urbano.
É esse tipo de encenação que encontramos no Parque das Nações. Aliás, é difícil não associar a generalização das formas urbanas barrocas em Odivelas e em muitos lugares do nosso querido Portugal a uma certa vontade em replicar o desenho urbano dominante do Parque das Nações, que é eminentemente pós-moderno e barroco, apesar de incorporar alguns elementos morfológicos caros ao Movimento Moderno (sobretudo na sua zona mais a norte).
Aliás, o caso de Odivelas, até pela proximidade ao Parque das Nações, constituiu um exemplo paradigmático dos efeitos nefastos que essa grande operação urbanística pode vir (e está já) a provocar nas cidades portuguesas (António Mega Ferreira já afirmou, em entrevista ao DN há umas semanas, que vai dizer o que pensa sobre o Parque das Nações para o ano, 10 anos passados sobre a EXPO 98; estou cheio de curiosidade...).
As Colinas do Cruzeiro são o caso mais emblemático do regresso ao barroco em Odivelas. Mas não são o único. Falarei a seguir do Jardim da Radial, Ramada (na foto), onde esse tipo de tendências revivalistas se manifestaram pela primeira vez de forma evidente no nosso concelho.